Conheça as origens do movimento gay e o primeiro ativista

É injusto tratar Stonewall como marco do ativismo e esquecer o que veio mais de 100 anos antes

Publicado em 21/06/2020
O alemão Karl Heinrich Ulrichs, precursor do movimento gay no mundo
Ao enfrentar juristas, Ulrichs se tornou o primeiro gay na história moderna a reivindicar direitos civis para homossexuais

Por Walter Silva, ativista, escritor e professor de Língua Portuguesa

A emergência do nazismo ao longo da terceira década do século XX na Alemanha obscureceu e apagou da história o registro do início do moderno movimento gay. Esse é limbo que cedeu espaço à narrativa americana dos motins de Stonewall, em Nova York de 1969, como se eles fossem o mais significativo marco dessa trajetória.

A grande repressão nazista aos homossexuais imprimiu na consciência do Ocidente arquétipo intrinsecamente relacionado ao Parágrafo 175, dispositivo legal que proibia a homossexualidade na Alemanha. Dessa forma, toda perspectiva anterior a isso é lida como "uma caminhada em direção a Hitler". Tal varre para baixo do tapete a memória das lutas que se desenvolveram e da resistência política que é anterior, simultânea e posterior ao fascismo.

É preciso conhecer e reconhecer que, entre 1860 e 1920, nasceu, se expandiu e se cristalizou movimento diversificado, em cuja vanguarda estavam os esforços do pioneiro e advogado Karl Heinrich Ulrichs. Ele, em agosto de 1867, durante o sexto congresso de juristas alemães em Munique, discursou para pedir a revogação das leis que criminalizavam o sexo entre homens.

Ao enfrentar uma plateia de 500 personalidades do meio jurídico, Ulrichs se tornou o primeiro homem gay na história moderna a reivindicar publicamente direitos civis para homossexuais.

Ele foi, portanto, em essência, o primeiro ativista homossexual, e suas ideias gradualmente se firmaram, apesar da oposição. Seus livros foram traduzidos e vendidos até em livrarias de algumas cidades americanas, e uma peça da atriz Mae West na década de 1920 mencionou o trabalho dele.

Outros fatos importantes mostravam a grande efervescêcia afirmativa homossexual da época. Ainda na década de 1880, um comissário de polícia desistiu de processar bares homossexuais.

Em 1896 surgiu a primeira revista gay, Der Eigene, e no ano seguinte, foi fundado o Comitê Científico Humanitário, primeiro grupo gay do mundo, por Magnus Hirschfeld, instituição que era comprometida com pesquisa científica e disseminação da educação como forma de promover inclusão e tolerância.

No seu auge, o comitê contava com 500 membros e ramificações em 25 cidades alemãs, além de ter se expandido para a Suíça, Holanda e Áustria. Esse grupo realizava petições, palestras, viagens internacionais e comícios. Em 1909, enviou delegados à Nova York, e Emma Goldman, anarquista que defendeu os homossexuais na América, trocava correspondências com os seus ativistas.

Em 1904, Hirschfeld recepcionou uma palestra de Ana Ruling, considerada primeira ativista lésbica moderna. No ano de 1910, mesmo ano em que as primeiras lésbicas se tornaram "delegadas" do Comitê Científico Humanitário, o grupo ajudou a bloquear tentativa de criminalização da lesbianidade pelo parlamento alemão.

Duas décadas após o Comitê ter sido criado, uma primavera gay se estabeleceu na Alemanha. Multiplicaram-se os chamados "clubes da amizade", que reuniam gays e lésbicas em associações dedicadas a exercer funções sociais e oferecer serviços aos membros. Os estabelecimentos eram geralmente vinculados a revistas homossexuais militantes.

Havia, a propósito, mais revistas gays e lésbicas na década de 20 em Berlim que em Nova York dos anos 60. Berlim de Weimar era internacionalmente conhecida pela sua liberalidade na questão homossexual. Tanto é que foram vários os intelectuais gays que migraram para lá, tais como o escritor Christopher Isherwood, cuja obra sofreu forte impacto da experiência homoerótica vivenciada pelo autor na Alemanha.

Esse cenário possibilitou a circulação de canções e filmes abordando a homossexualidade e viu nascer movimento de ativismo de massa. Neste período a organização dos clubes homossexuais sob a "Liga da Amizade" foi renomeada como "Liga dos Direitos Humanos", um grupo liderado pelo empresário Friedrich Radzuweit, que arregimentava 50 mil membros.

A "Liga dos Direitos Humanos" se distanciava ideologicamente tanto da postura mais à esquerda e sexológica do Comitê Científico, quanto da Gemeinschaft der Eigenen (Comunidade de Si), idealizada por Adolf Brand em 1903 e que era entidade culturalista que recusava a teoria do terceiro gênero chegando a ter 3.000 associados, sendo famosa pelo uso da tática do "outing compulsório" (tirar do armário à força).

O impacto do movimento gay alemão atingiu os homossexuais americanos ainda em 1924. Diretamente influenciada pelo ativismo de Berlim, apareceu em Chicago a "Sociedade de Direitos Humanos’", primeiro grupo gay das Américas, fundado pelo imigrante Henry Gerber e presidido pelo reverendo afro-americano John T. Graves.

Mais de duas décadas após, inspirando-se na Sociedade de Chicago, a Sociedade de Matachine retomaria em 1950 a reconstrução do movimento pela libertação homossexual, interrompido em 1933 quando os nazistas tomaram o poder.

*Texto com referência à obra Gay Berlin: Birthplace of a Modern Identity, de Robert Beachy.


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